Sombras e Sonhos

A fantasia surge dos mais recônditos lugares da psique humana, e talvez não seja bem uma fuga da realidade, mas uma distorção da mesma por um inconsciente que sua uma óptica diferente para assimilar as coisas. Desses lugares, às vezes impenetráveis, surgem nossos sonhos, e pesadelos, e tudo aquilo que permeia o infinito campo mental que não conseguimos controlar, a não ser que nosso eu seja dotado de certo poder controlador e esteja inserido na própria fantasia. O que parece confuso é apenas complexo, pois tratar desse assunto, que ainda carrega certo quê de incógnita, não é tarefa fácil. Porém Álvaro Domingues, embora não seja louco, esquadrinha essa personagem psicológica, que por sua vez anda de mãos dadas com a fantasia, o sonho e a ficção-científica. O resultado é um conjunto de belos (e excelentes) contos que compõe este Sombras e Sonhos (2010).

Freud em seu A Interpretação dos Sonhos preconiza que os sonhos são a realização de um desejo, levando em conta que desejo não significa necessariamente vontade, mas pode ser encarado também com anseio por uma conquista futura. Para Álvaro o sonho tem um leque de possibilidades maior podendo ser uma previsão (e/ou desejo) de futuro, uma volta ao passado, uma viagem ao improvável, uma fuga da realidade, assim como um cair de cara nela. As nuances aqui abordadas nos permite ver que o assunto foge a sua complexidade e se apresenta como um ponto de partida para muitas abordagens, mas que ao mesmo tempo é comum a todos e, portanto talvez não seja algo tão extraordinário. Se é comum não é estranho, esse paradoxo pode não funcionar, mas serve de justificativa para quem não deseja filosofar sobre sonho.

Cada conto (ou sonho) vem acompanhado de uma sombra misteriosa, seja ela uma sombra que represente determinada emoção ou ainda uma sombra-espectro como a morte que está presente em algumas dessas historietas, que por sinal são 38 no total. Sombras e Sonhos (Balão Editorial, 136 pág.) é o primeiro trabalho do autor e o terceiro da editora que o publica, que é nova no mercado e se seguir o padrão editorial deste volume tende a conseguir certo destaque. A edição do livro é belíssima, confere certa suavidade que torna sua leitura mais agradável. Quanto à técnica do autor não se pode definir facilmente porque ele se usa de artifícios múltiplos, permitidos pelo gênero. Aqui encontramos narrativas longas e curtas, que abordam esse ou aquele assunto, mesmo que ainda tenham esse ponto em comum do sonho ou da sombra. Em meio a romances, dramas e até comédia, há elementos como viagens no tempo e no espaço, seres fantásticos, seres humanos comuns e diversas referências de livros, autores, filmes e séries de TV, inclusive da cultura pop japonesa.

Os contos curtos, que tendem a ser tendência literária, se é que se pode dizer assim, são os melhores, pois eles trazem muito mais coisas implícitas do que escritas no papel. São apenas a fechadura que abre a porta de reflexão em que somos instigados a entrar. “E se…?” é um dos contos mais bem construídos, pois relativiza o tempo como fator determinante e assume características ficcionais muito parecidas com as que Philip K. Dick usa em Ubik. “A vida num instante” surpreende com a forma sutil que o autor ironiza e ao mesmo tempo dá uma nova interpretação à criação do mundo. Eis que a religião é um tópico recorrente em alguns dos contos, entre eles “Fruto proibido”, “Nascimento”, “Psicografia” e “Abrigo divino”.

A organização dos contos confere unidade aos textos, permitindo uma fluência maior e assim uma interligação entre as narrativas, o elemento de um conto insiste em aparecer no conto seguinte formando uma espécie de romance desmontável, ou um ainda um móbile de contos ligados por uma haste. “Por toda a eternidade” trás uma releitura de uma lenda antiga de um músico encantador. Depois somos surpreendidos pelo romance sobrenatural retratado em “Amálgama”, e o amor aparece com outras faces também, como em “O chamado da floresta”, onde uma bruxa nutre um amor maternal por um menino lobo. Em “Sonho lúcido” vemos certa metalinguagem onde o autor usa o sonho para falar do sonhar, mesmo indo de encontro à ideias que dizem que o sonho deixa de ser sonho a partir do momento que temos consciência de que estamos sonhando. Esse aspecto é abordado no filme Waking Life (2001), uma espécie de documentário que se propõe a dissecar todas as teorias do sonho. Para Álvaro Domingues isso acontece, desde que, em seu mundo (escrito) de sonho ele é quem comanda. Esse conto é seguido “Sonhos de menina” a única poesia do conjunto, esse texto lírico parece funcionar como uma continuação ou complemento do texto anterior.

O autor ainda se permite homenagear os animes, em especial Soul Hunter, que lhe servem de inspiração e referência e diversas partes. Podemos ver ainda a influência de Isaac Asimov em “À nossa imagem e semelhança”, por exemplo. Há ainda que se mencionar à crítica sutil e irônica ao totalitarismo em “Politicamente correto”. É tudo isso que confere a essa obra uma grande importância. O autor não escreve por escrever, a fim de preencher um número específico de páginas. Cada texto tem uma razão de ser e de compor o livro, cada um nos revela um aspecto daquilo que o autor deseja discutir (em ideias) com o leitor. E isso ele consegue com êxito, os contos nos levam a pensar, refletir, filosofar e ainda conjecturar, discordar e criar certas opiniões acerca de tudo que é dito. É um livro que vale a pena conferir. Recomendo!

2 comentários

  1. Já li e reli o livro de Álvaro, Sombras e Sonhos. Aprendi com ele a confiar nos sonhos e deles tirar os segredos da alma e transmiti-los em meus contos, também.
    Aprendi muito sobre literatura lendo sombras e Sonhos
    É um livro fantástico!!!
    Sonia

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    • Olá Sonia…

      O livro do Álvaro é ótimo mesmo. Eu o li de uma só vez, mas tive que reler alguns contos, pois alguns escondiam detalhes que precisavam de uma atenção redobrada. o/
      Esse mundo onírico é surpreendente, me lembrou muito o trabalho do David Lynch (nesse caso no cinema).

      Obrigado pela visita e pelo comentário.

      Beijos!

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