Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera

Barba Ensopada de Sangue

Persuadir uma pessoa a não seguir o coração é obsceno, a persuasão é uma coisa obscena, a gente sabe do que precisa e ninguém pode nos aconselhar.
Daniel Galera, Barba Ensopada de Sangue, pág. 32.

Barba Ensopada de Sangue é o quarto romance do paulista agauchado Daniel Galera. Um livro intenso, nu, cru e muito bem construído. Meu contato anterior com o autor se resumia a familiaridade do seu nome visto em sites, blogs e numa antologia de textos. Eis então que recebo a indicação direta da minha amiga Luiza, já encantada pelo autor, quando ela devorava este livro. O livro não é recente, mas ao ler temos a noção de que esta é uma história atemporal, embora o tempo e o espaço sejam pontos significativamente importantes para o desenvolvimento da trama.

A história se passa em 2008, no litoral de Santa Catarina, mais precisamente em Garopaba, uma cidadezinha cheia de mitos e mazelas. O protagonista inominado é um educador físico que resolve se mudar para Garopaba, com o intuito de investigar a morte misteriosa do seu avô. No primeiro capítulo, temos um diálogo entre o educador físico e seu pai, que comunica sua decisão de se suicidar e pede ao filho que sacrifique sua cachorra Beta, para que a mesma não sofra a morte do dono. Antes disso, o pai suicida (a quem se atribui a citação inicial deste texto) narra a história de Gaudério, avô do protagonista, que foi assassinado brutalmente em Garopaba, onde havia decidido ir morar e onde havia construído uma má fama.

A princípio o que se sabe é que Gaudério foi morto durante um baile. Houve um apagão e quando as luzes se acenderam seu corpo estava inerte no chão, tendo recebido inúmeras facadas. Sem um suspeito específico, já que o fulano era odiado por toda a cidade, o caso (e não o morto) foi enterrado e ninguém toca no assunto. É com esse pontapé que o protagonista do livro vai parar na cidade onde seu avô foi assassinado. Os tempos são outros, alguns moradores também se renovaram e o educador físico consegue trilhar um caminho diferente do seu antecessor, mais pautado na simpatia entre os nativos. Até que ele resolve fazer perguntas sobre a “lenda” do seu avô, despertando assim a hostilidade hereditária da população. Até quem nasceu depois do ocorrido ignora o assunto, movidos por um temor incrustado das histórias familiares. Assim como, na maioria das vezes, uma criança é ensinada a seguir a crenças dos pais, assim também é com a história do Gaudério.

O nosso protagonista transgressor contraria um dos desejos do seu pai e não sacrifica a cachorra. Resolve adotá-la, e isso a transforma na sua companheira inseparável. Excetuando o protagonista, a cachorra Beta é a personagem mais bem construída do livro. Ela tem personalidade e mais “humanidade” do que muitos humanos, sendo impossível não compará-la ou até mesmo associá-la à cachorra Baleia que Graciliano Ramos eternizou em Vidas Secas. A referência chega a ser uma espécie de inversão, em que o autor mostra que há sofrimento, felicidade e esperança independente do locus em que a mazela se faça presente.

Ainda que seja algo tão claro e intencional, há diálogo entre os livros de Daniel e Graciliano. Enquanto o nordestino escreve sobre um ambiente assolado pela seca, Galera pinta um cenário inundado, seja pela imensidão do oceano que mais leva do que dá para a população, seja pela chuva que mesmo sem trégua não lava a sujeira incrustada no caráter da sociedade. A semelhança está no fato de que em ambos os livros há uma inversão entre os comportamentos humano e animal, usando como base a inserção do cachorro (o melhor amigo do homem). O vaqueiro de Graciliano, chamado de bicho (no sentido de animal), e o educador físico de Daniel se inserem em situações em que o instinto e a ferocidade, características animalescas, se sobrepõem à racionalidade humana. Os conhecedores da obra de Graciliano sabem que o nome da cachorra, Baleia, é uma metáfora à esperança dos seus personagens. Por fim, no livro de Daniel, o dono pergunta à sua cadela “Quer virar baleia agora?”, quando esta tenta adentrar num ambiente que não lhe pertence.

Voltando à obra em si, Daniel Galera tem uma escrita consciente e bem trabalhada. Com diálogos memoráveis e críveis, o autor mistura o discurso direto com o indireto, aproximando o narrador dos personagens e do leitor. Por vezes o livro toma ares de documentário ou livro de memórias, quando o autor se utiliza de notas de rodapés que são discursos dos próprios personagens que passaram pela vida do protagonista.

Passar pela vida”, essa é a expressão certa para definir as relações pessoais do protagonista. A cadela é o único ser perene em sua jornada, todos os demais (parentes e amigos) são como ondas que vão e que vem, como a maré que sobe e desce e até mesmo como as temporadas turísticas da cidade, que ora é frutífera, ora é escassa. Nenhum outro personagem tem uma construção muito sólida, não que o autor não saiba fazê-lo, mas, acredito eu, que seja algo proposital para mostrar como a relações são frágeis e susceptíveis às mudanças de temperatura, podendo esquentar ou esfriar circunstancialmente de acordo com o tratamento ou prioridade que se atribui a elas. Assim, amigos, amantes, família, trabalhos, sonhos vão e vem na vida do personagem, que, em decorrência de uma doença rara, nem sequer consegue se lembrar do rosto das pessoas por mais que algumas poucas horas.

O livro possui uma espécie de prólogo antes do texto propriamente dito. Eu, particularmente gostaria que ele viesse como epílogo e não como prólogo, pois ele acabou revelando nuances que me permitiram presumir muita coisa que aconteceria. A intenção do autor era justamente essa, de nos revelar aos poucos e clareando as coisas gradativamente, mas para mim a surpresa ao final causaria uma sensação bem melhor. Então, caso queira se surpreender um pouco mais, vá direto para o primeiro capítulo e leia o prólogo somente depois que concluir o livro. Não quero dizer que ele atrapalhe o texto, é apenas uma sugestão, pois como eu disse, o texto funciona muito bem como prólogo e como epílogo.

Daniel Galera, que também é tradutor, começou a publicar seus textos em um selo editorial independente, Livros do Mal, logo depois passou a ser publicado pela editora Companhia das Letras. Já conta com os títulos: Dentes guardados (contos), Até o dia em que o cão morreu, Mãos de cavalo, Cordilheira e a graphic novel Cachalote (com o desenhista Rafael Coutinho). Seu primeiro romance foi adaptado para o cinema sob o título Cão sem Dono, com direção de Beto Brant e Renato Ciasca. O primeiro capítulo de Barba Ensopada de Sangue integra a antologia Granta 9 – Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros, e os direitos de publicação do livro foram adquiridos por editoras de vários países, antes mesmo dele ser publicado aqui no Brasil ano passado.

Sim, Daniel Galera é um dos melhores jovens escritores que temos, e merece atenção. Não deixem de conferir o trabalho dele, vamos aguardar novidades, enquanto isso eu preciso conferir seus trabalhos anteriores. E vocês, já conheciam o Daniel? Comentem!

Ficha Técnica

Barba Ensopada de SangueTítulo: Barba Ensopada de Sangue
Autor(a): Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras
Edição: 2012 (1ª)
Ano da obra / Copyright: 2012
Páginas: 424
Sinopse: Um professor de educação física busca refúgio em Garopaba, um pequeno balneário de Santa Catarina, após a morte do pai. O protagonista se afasta da relação conturbada com os outros membros da família e mergulha em um isolamento geográfico e psicológico. Ao mesmo tempo, ele empreende a busca pela verdade no caso da morte do avô, o misterioso Gaudério, que teria sido assassinado décadas antes na mesma Garopaba, na época apenas uma vila de pescadores. Sempre acompanhado por Beta, cadela do falecido pai, o professor esquadrinha as lacunas do pouco que lhe é revelado, a contragosto, pelos moradores mais antigos da cidade. Portador de uma condição neurológica congênita que o obriga a interagir com as outras pessoas de modo peculiar, ele estabelece relações com alguns moradores: uma garçonete e seu filho pequeno, os alunos da natação, um budista histriônico, a secretária de uma agência turística de passeios. E aos poucos, vai reunindo as peças que talvez lhe permitam entender melhor a própria história.

Onde comprar:
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5 comentários

  1. Admito que leio pouca coisa de escritores contemporâneos, mas essa obra me chamou muita atenção. Gostei do título, e do que contou sobre o livro.
    Se me lembro bem, “Cão Sem Dono” é um filme que eu tenho super vontade de assistir, inclusive tenho ele no meu “Quero Ver” do Filmow. Infelizmente nunca consegui assisti-lo.
    Ademar, se você acha que eu vou gostar desse livro, eu tenho praticamente certeza que sim, já que você conhece bem meu gosto e porque me interessei de cara pela trama. Posso ler ele nesses dias até.

    Parabéns pelo texto, Ademar. Adorei as referências que elucidou 😀

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    • Oi Júnior,
      Então, eu estava precisando ler algum escritor nacional, depois de ler tantos livros estrangeiros, rs. Daniel Galera caiu como uma luva.
      E como eu já disse, me surpreendi com ele e com sua escrita. Me envolvi muito com o livro e é um daqueles livros que faz a gente sentir saudades depois.
      Ainda não vi o filme “Cão Sem Dono”, mas quero ver também, e ler o livro é claro.
      Obrigado pelo comentário.

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  2. Terminei de ler o livro ontem e hoje estou pensando muito nele ,em trechos que gostei e que não gostei.Acho que alguns epsódios poderiam ser eleiminados pois não fariam falta nenhuma,mas no conjunto gostei muitissimo.Os fenômenos do mar e das baleias estam muito bem descritos.Achei no entanto eruditos demais os papos de um personagem local com o protagonista.(Bonobo) O trecho sobre sexo com a aluna não fariam falta nenhuma .,assim como outros que não me lembro e que arrrastam o conjunto da obra.
    Enfim ,um livro que não se esquece.E imagine que foi descartado por alguém que joga livros fora!Ainda bem que peguei pra mim.Recomendo.

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