| Resenha | O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman

O Oceano no Fim do Caminho

– Ninguém realmente se parece por fora com o que é de fato por dentro. Nem você. Nem eu. As pessoas são muito mais complicadas que isso. É assim com todo mundo.
Neil Gaiman, O Oceano no Fim do Caminho, pág. 129.

Meu primeiro contato com Neil Gaiman não foi dos mais positivos. Isso porque tal contato se deu através do livro Coisas Frágeis, que aqui no Brasil foi publicado em dois volumes. Consegui concluir o primeiro volume, mas não me senti de forma alguma motivado a ir para o segundo. A meu ver, Neil Gaiman poderia ser um bom romancista e um excelente roteirista de quadrinhos, mas como contista ele não havia me convencido em nada. A maioria dos contos me passava falta de originalidade e um excesso de referências que chegava a ser pedante. Mas, eu não conseguiria ficar nisso, já que Gaiman é um queridinho de todos.

Neil Gaiman
Neil Gaiman

Assim, me propus a dar um novo passo nessa minha relação com o autor, e o segundo passo era seus romances. Comecei pelo mais recente, O Oceano no Fim do Caminho, publicado pela editora Intrínseca, e como eu já esperava, Gaiman não só me convenceu como se tornou um dos meus autores favoritos só pelo que ele fez nesse livro.

O livro começa com um homem de meia idade voltando à cidade onde passou sua infância para um funeral. Ao se deparar com os cenários onde cresceu, lembranças há muito esquecidas retomam a sua mente e somos imersos nela numa narrativa que lembra um longo flashback. No capítulo seguinte, o personagem inominável, mas que em determinado momento é chamado de George, o Gracioso, está com sete anos e narra como conheceu a família Hempstock, que morava numa fazenda no fim da estrada. A fazenda Hempstock é habitada por três gerações de mulheres, Lettie, de 12 anos, sua mãe Ginnie e sua avó, a velha senhora Hempstock.

Lago de patos, ilustração de Emiliano Ponzi
Lago de patos, ilustração de Emiliano Ponzi

Lettie, a melhor das personagens, é uma garota misteriosa. Ela possui um lago de patos no fundo do seu quintal, o qual afirma tratar-se de um oceano, e mais, que foi através dele que sua família chegou à Inglaterra. Mesmo não se convencendo disso George se torna amigo de Lettie e aos poucos vai descobrindo os segredos por trás da garotinha e sua família.

O Oceano no Fim do Caminho foi lançado como um romance adulto. Seria a quebra do hiatus de oito anos que Gaiman passou sem lançar nada para esse público. No entanto, invariavelmente o livro tem um ar mais voltado para o infanto-juvenil, que é o lugar comum de Gaiman. A partir do momento que a narrativa começa a contar os acontecimentos da infância do protagonista o discurso torna-se infantil, permeado de uma ingenuidade típica da idade na qual o personagem está. No entanto, a narrativa transita entre o tempo presente dos acontecimentos do garotinho de sete anos e o tempo real que se configura como o flashback do personagem já adulto. Assim, no final de alguns capítulos o homem de meia idade faz questão de lembrar que ele está ali e é ele quem está narrando, embora a voz do narrador seja de uma criança.

A trama situa-se num limiar entre o nosso mundo e um mundo fantástico cheio de magia e monstros. Este segundo como representante do imaginário infantil, que é capaz de criar as mais diversas criaturas. Ainda que parte do sobrenatural seja posto como realismo fantástico, comum na obra de muitos escritores consagrados, a fantasia de Gaiman mais uma vez cria um mundo próprio regido por suas regras.

Mandrágora, em Harry Potter e a Câmara Secreta
Mandrágora, em Harry Potter e a Câmara Secreta

Não obstante, Gaiman usa várias referências de outros escritores fantásticos. A começar pela epígrafe em que ele cita uma frase de Maurice Sendak, autor de Onde Vivem os Monstros, na obra de ambos há uma linha tênue entre a certeza e a dúvida se o mundo onde os monstros habitam é real ou apenas imaginação da mente infantil. Alguns autores são citados diretamente como C. S. Lewis (As Crônicas de Nárnia) e Lewis Carroll (Alice no País das Maravilhas). Muitas obras já referenciaram a planta mitológica mandrágora, uma planta cuja raiz tem um formato humanoide e que em geral emite um ruído quando retirada da terra, mas foi a descrição de J. K Rowling em Harry Potter e a Câmara Secreta que Gaiman tomou como referência:

As mandrágoras gritam demais quando você tira elas da terra, e eu não estava com protetores de ouvido, e depois que estava com elas tive que trocar elas por uma garrafa de sombras, uma daquelas antigas, cheia de sombras diluídas em vinagre… (pág. 128)

Longe de ser uma cópia de qualquer outra obra, O Oceano no Fim do Caminho é uma fábula original, que mescla os elementos da já conhecida fantasia urbana de Gaiman com elementos do conto de fadas contemporâneo. É também um retrato nostálgico de como a infância dita, de uma forma ou de outra, quem seremos na vida adulta, e como os acontecimentos vividos na primeira fase da vida podem nos afetar para sempre. A trama se desenvolve de tal forma, que se eu me permitisse falar qualquer coisa a mais sobre ela nesse texto, estaria cometendo um grave delito.

Por ser um livro mágico, emocionante (diga-se pelo final arrebatador) e um dos mais nostálgicos que já li, este se tornou um dos meus favoritos facilmente. Vale muito a pena ler.

Curiosidades:

  • Segundo Gaiman este livro surgiu quando Jonathan Strahan lhe encomendou um conto: “Comecei a escrever sobre o minerador de opalas e a família Hempstock (que tem vivido na fazenda na minha cabeça há muito tempo), e Jonathan me perdoou e foi muito gentil quando finalmente admiti a mim mesmo e a ele que não se tratava de um conto, que em vez disso havia se tornado um romance“.
  • Quando terminou de escrever o livro, Gaiman enviou o manuscrito para muitos de seus amigos para que o lessem, vários deles escritores, entre os quais estavam Melissa Marr (A Guardiã e a série Wicked Lovely), Cornelia Funke (O Senhor dos Ladrões, O Cavaleiro Fantasma, a série Mundo de Tinta e a série Reckless) Peter Straub (O Talisma, A Casa NegraOs Mortos-VivosMr. X) e Kelly McCullough (série Fallen Blade e série WebMage).
  • Foi publicada aqui no Brasil, pela Geração Editorial, uma mega biografia, sobre a vida e obra de Neil Gaiman, intitulada Príncipe de histórias – Os vários mundos de Neil Gaiman.
  • Participe da Gincana Literária 2013 (link abaixo), que está sendo hospedada aqui pelo Cooltural e concorra a este e mais outro livros no sorteio final.

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Ficha Técnica

O Oceano no Fim do CaminhoTítulo: O Oceano no Fim do Caminho
Título original: The Ocean at the End of the Lane
Autor(a): Neil Gaiman
Editora: Intrínseca
Tradução: Renata Pettengill
Edição: 2013 (1ª)
Ano da obra / Copyright: 2013
Páginas: 208
Sinopse: Foi há quarenta anos, agora ele lembra muito bem. Quando os tempos ficaram difíceis e os pais decidiram que o quarto do alto da escada, que antes era dele, passaria a receber hóspedes. Ele só tinha sete anos. Um dos inquilinos foi o minerador de opala. O homem que certa noite roubou o carro da família e, ali dentro, parado num caminho deserto, cometeu suicídio. O homem cujo ato desesperado despertou forças que jamais deveriam ter sido perturbadas. Forças que não são deste mundo. Um horror primordial, sem controle, que foi libertado e passou a tomar os sonhos e a realidade das pessoas, inclusive os do menino. Ele sabia que os adultos não conseguiriam — e não deveriam — compreender os eventos que se desdobravam tão perto de casa. Sua família, ingenuamente envolvida e usada na batalha, estava em perigo, e somente o menino era capaz de perceber isso. A responsabilidade inescapável de defender seus entes queridos fez com que ele recorresse à única salvação possível: as três mulheres que moravam no fim do caminho. O lugar onde ele viu seu primeiro oceano.

Onde comprar:
Submarino | Estante Virtual | Saraiva | Cultura

16 comentários

  1. Esse livro é Maravilhoso! Muito diferente de tudo que já li. Gaiman é o CARA!!! Me fez voltar a minha infância e refletir sobre toda a minha vida… Sempre fui fã de carteirinha dele. Essa resenha está excelente, já li muitas resenhas dizendo também que não gostaram de Coisas Frágeis, eu li os dois volumes e amei também… Quero muito esse livro adaptado ao cinema!!! Seria um sonho, imaginou?

    Parabéns pela resenha!

    Bjus.

    http://www.loucaporlivros2.blogspot.com.br

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    • Oi Elaine,
      Aconteceu o mesmo comigo, volta e meia eu estava imerso em várias lembranças da minhas infância e o tempo todo com aquela sensação de nostalgia. Sem falar que a história do livro é mágica.
      Então, eu penso em reler Coisas Frágeis, quem sabe hoje eu tenha uma nova visão sobre ele.
      Seria ótimo mesmo ver esse filme no cinema. Vamos aguardar.
      Beijos

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    • Elaine, pode ficar tranquila e ansiosa porque já estão fazendo o roteiro para este e outros livro do mestre Guimarães.

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      • Oi Raphael,
        É verdade, já estão preparando uma adaptação para o cinema. Mas como é Neil Gaiman, tudo fica mais fácil.
        Abraço.

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    • Oi Camis,
      Olha, você tem que voltar para essa leitura, sério.
      No começo eu não tava tão convencido se ia gostar, mas a experiência foi incrível, vale muito a pena. Acredito que se vc sentar para lê-lo, você consegue terminar bem rapidinho.
      Quando terminar de ler me diz o que achou.
      Beijos

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    • Oi Vanessa,
      Eu posso pensar sim em alguns livros sobre mitologia e te passar uma indicações lá no seu blog.
      Fico feliz que tenha gostado do blog.
      Tente vencer esse bloqueio em relação ao Gaiman, eu também tinha, acredite.
      Esse livro é um boa forma de começar, recomendo.
      Beijos

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  2. Nunca li nada de Gaiman, apesar de receber muitas recomendações, e O Oceano no Fim do Caminho chamou muito a minha atenção, por ser uma lançamento recente e por ser um livro conceituadíssimo e bem falado na época. Sua resenha me deixou ainda mais curioso e fiquei super feliz que o autor consegue mesclar realidade com fantasia em um tom nostálgico. Acho que a leitura vale a pena.

    Abraços, Joshua Guimarães
    Blog Pensamentos do Joshua – pensamentosdojoshua.blogspot.com

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    • Oi Joshua,
      Até ler esse livro eu só tinha lido os contos de Coisas Frágeis, e não tinha gostado. Mas esse livro me fez mudar toda a minha visão que eu tinha do autor.
      Eu acho que você vai adorar, e sim a mescla de realidade e fantasia no livro é uma experiência ímpar.
      Abraços

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    • Oi querida,
      Foi exatamente o que aconteceu comigo, com um diferencial, eu já tinha lido um livros de contos dele que não tinha me convencido em nada, mas esse me fez ter uma nova visão sobre o autor. Adorei.
      Fico feliz que tenha gostado da resenha.
      Beijos

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    • Oi Deniac,
      Então, sobre “Harry Potter x Os Livros da Magia”, eu acho que possa haver sim a inspiração por parte de Rowling no visual de Tim Hunter, mas é como o próprio Gaiman falou, as obras tem abordagens tão diferenciadas que nem dá pra ver de fato como um plágio. E ainda usando as palavras do próprio Gaiman, ambos foram mais influenciados pelo Wart de T. H. White do que pela própria criação de um sobre o outro (Gaiman e Rowling).
      Por fim, eu acredito que ambos sejam autores que se leem e cujas obras influenciem umas as outras. Se Rowling de fato se inspirou em Gaiman, este por sua vez usou a obra final dela para se inspirar também.
      Eu acredito nisso.
      Obrigado pelo comentário, adorei seu blog.
      Abração!

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  3. Tá certo, me convenceu! Ainda estava com um pé atrás a respeito desse livro (não sei bem porquê), mas sua resenha me fez perceber que ele é especial e merece muito ser lido. Com certeza quando eu tiver oportunidade lerei sim essa obra (:

    Brunna Carolinne – My Favorite Book – @MFBook
    myfavoritebook-mfb.blogspot.com.br

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    • Oi Brunna,
      Fico feliz de tê-la convencido, rsrs. Mas olha, o livro é bem legal mesmo, e eu acredito que você vá gostar bastante.
      Como o livro é curtinho nem atrapalha muito a nossa lista de leituras.
      Quando ler me avisa.
      Beijos

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