Recordações de um Olho Torto, de Plínio Cabral

Recordações de um Olho Torto

 […] Compreendi, muito cedo, a verdade que existe no dito popular: “Não deixes que tua mão esquerda saiba o que faz a direita”. Para mim é algo muito embaraçoso, criando, inclusive, situações anômalas que determinam estranhas paralisações em plena rua: a perna esquerda tende para a direita, a direita tende para a esquerda, tomando rumo perigoso e de consequências imprevisíveis. […]
Plínio Cabral, Recordações de um Olho Torto, pág. 11.

Ano passado, numa de minhas compras compulsivas, me deparei com esse título que mexeu bastante comigo. Fiquei me perguntando o que um “olho torto” poderia guardar de recordação? Acabei não resistindo e comprei. Lembro que li assim que ele chegou. Agora há pouco estava fazendo a conferência dos meus livros emprestados (e com quem estavam) e lembrei-me dele. Imaginei que já havia resenhado ele, mas pelo visto, não. Como o livro é muito bom e me marcou bastante, acredito que conseguirei passar minha boa impressão dele para vocês.

Lembro-me que tanto o título quanto a sinopse me fizeram esperar uma história macabra, algo que beirasse o terror ou pelo menos um suspense. Algo me lembrou os títulos do Stephen King. Mas, embora a história contada ainda seja um tanto bizarra, ela consegue ser extremamente cômica. Esse livro foi escrito principalmente para quem deseja fazer uma leitura descompromissada, leve e divertida. Ou ainda para aqueles que adoram uma excelente crítica social, uma história irônica e/ou com bastante humor ácido.

A história de Almerindo é dividida em (rápidos) 35 episódios/capítulos, que vão do seu nascimento à sua morte. Mas quem é Almerindo? Porque ele merece ter sua vida contada? Há quem o considere apenas um pobre coitado que nasceu com uma deficiência visual. Para mim, ele é um anti-herói que aprendeu desde criança a lidar com as diversas dificuldades e humilhações. Por morar no interior e não poder ajudar a família (por causa do olho), Almerindo sofre discriminação, inclusive dos pais, que ao perceberem seu problema, passam a desejar que ele não “vingue”.

Mesmo sendo um drama muito tenso e complexo, Plínio Cabral conseguiu torná-lo leve e divertido. Em algumas cenas, o leitor fica com aquela sensação de que não deveria estar sorrindo de algo tão trágico. A famosa vergonha alheia para com o personagem. Isso acontece no episódio em que ele, ainda criança, está aprendendo a ler. Seu olho não lhe permite fazer as associações corretas das sílabas, fazendo com que a palavra “batata” se torne algo que inexiste. Vários acontecimentos fazem a professora desistir de ensiná-lo.

Outro momento que seria trágico se não existisse o olho torto, foi a vingança de Almerindo (e um primo). Após se cansar de tanta humilhação, o anti-herói decide que é hora de matar o pai, até ser dissuadido por um primo, que sugere apenas que ele pregue sustos. Esses episódios são extremamente divertidos. Felizmente, o autor não fez uso de apelo dramático, embora fosse possível. Mas em algumas situações a aplicação do humor é sempre a melhor escolha.

Como o livro conta toda a vida do protagonista, ela é cheia de momentos tragicômicos. Mas gostaria de lembrar uma, especificamente, que demonstra a ingenuidade de Almerindo. Não lembro a cena com detalhes, mas sei que foi no momento em que ele foi apresentar-se no exército (cena comum para os meninos) e o comandante vai justificar a não permanência dele na corporação. Ele diz algo como: “Você não pode ficar porque tem a perna torta e o olho idem”. Ao invés de se chatear ou ficar triste por não realizar o sonho dos pais, Almerindo responde todo feliz: “Que bom, agora sei o que tenho nesse olho. Tenho um olho ‘idem’”. Eu fiquei tão comovido com essa fala dele.

Outros pontos são abordados no livro, como a religiosidade, nos momentos em que a deficiência de Almerindo é associada a um “pacto com o demônio”; as relações políticas, nos momentos de favorecimento a Almerindo, já que ele começa a namorar a filha de um político; a própria questão da fome e má distribuição de renda. Enfim, vários pontos que fazem com que a obra seja rica e importante.

Plínio Cabral é um escritor gaúcho que teve sua vida voltada para a escrita, pois além de criador de histórias (infanto-juvenis, contos, crônicas, romances e jurídicas), ele ainda era publicitário, advogado e militante político (Chefe da casa civil do Rio Grande do Sul em 1963-1964). Esses outros campos de trabalho fizeram com que sua forma narrativa e críticas ficassem mais impactantes.

Curiosidades:

  • Seu último livro ficcional, Recordações de um Olho Torto (Ed. Novo Século, 2008), foi recebido pela crítica como uma de suas melhores obras: “O humor se sustenta durante toda a trama, pois segundo o próprio Plínio Cabral, “a tragédia nacional também tem seu tom cômico”. Com um sensacional epílogo, este romance deve ser lido e pode ser considerado como o mais irônico e nítido retrato da sociedade brasileira atual.

Ficha Técnica

Recordações de um Olho TortoTítulo: Recordações de um Olho Torto
Autor(a): Plínio Cabral
Editora: Novo Século
Edição: 2008 (1ª)
Ano da obra / Copyright: 2008
Páginas: 224
Sinopse: Neste romance, dividido em 35 episódios, Plínio Cabral realiza um projeto que vem alimentando há muito tempo: escrever a história de certas partes do corpo que adquirem vida independente. “Recordações de um Olho Torto” conta a história de Almerindo, que já nasceu com dificuldade de ver. “Trata-se da vida de um homem simples, que olha tudo ao seu redor torto, o que causa confusões cômicas, mas bem verdadeiras”, explica Plínio Cabral. Almerindo cresceu isolado pelas irmãs e repelido pela mãe. O pai era indiferente quanto a sua existência. Apesar do descaso familiar, o autor não usa de uma narração com apelo dramático para contar essa história, mas recorre a traços de humor como, por exemplo, na passagem em que a mãe sonha que o menino torto, montado num burro, cai de um precipício. Ela acorda assustada, preocupada com o burro, porque com o menino tudo bem, mas sem o burro como iria trabalhar? O humor se sustenta durante toda a trama, pois segundo o próprio Plínio Cabral, “a tragédia nacional também tem seu tom cômico”. Com um sensacional epílogo, este romance deve ser lido e pode ser considerado como o mais irônico e nítido retrato da sociedade brasileira atual.

Onde comprar:
Submarino | Saraiva | Cultura

6 comentários

  1. Achei o livro muito interessante.
    Na realidade, vejo muito o Almerindo como qualquer outra pessoa que sofre discriminação. O olho torto (pelo menos pela resenha) parece ser uma associação cômica a outros tipos de “deficiência”, porque fiquei me perguntando como seria esse olho rs
    A impressão que tenho é que a sacada do autor é justamente mostrar como se comportam as pessoas que são discriminadas. Muito bom!
    É isso? rs
    Beijos

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    • É exatamente isso, Soraya.
      Quanto a “como seria o olho”, fica a incógnita: Seria um estrabismo ou algo associado a uma deformação facial? Não fica tão claro, mas eu gosto de pensar que seria um pouco dos dois.
      E também penso no Almerindo como qualquer pessoa que sofre discriminação. Que bom seria se todas as pessoas tivessem a força que ele tem! ^^
      E o livro é muito bom, já conhecia!?
      Beijos

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