| Resenha | O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers

Durante minha convalescência, comprei e li pela primeira vez O Rei de Amarelo. Lembro, depois de terminar o primeiro ato, que me ocorreu que era melhor parar por ali. Arremessei o volume na lareira, mas o livro bateu na grade protetora e caiu aberto no chão, iluminado pelas chamas. Se não tivesse visto de passagem as primeiras linhas do segundo ato, eu nunca teria terminado a leitura, mas, quando me levantei para pegá-lo, meus olhos grudaram na página aberta, e com um grito de horror, ou talvez tenha sido de alegria, tão pungente que o senti em cada nervo, afastei o objeto das brasas e voltei em silêncio e tremendo para meu quarto, onde o li e o reli, e chorei, e ri e estremeci com um terror que às vezes ainda me assola.
Robert W. Chambers, O Rei de Amarelo, pág. 22

Imagine um livro que é a materialização da maldade pura como o veneno letal de um animal peçonhento. Esse livro age como uma maldição para quem o lê, pois ao passar os olhos ao menos uma vez por suas páginas pestilentas, a desgraça se instala, inevitavelmente, no destino do infeliz leitor…

Esse é o estigma que acompanha a peça fictícia O Rei de Amarelo, considerada uma obra suprema da arte, mas que provoca efeitos destrutivos naqueles que ousam realizar tal leitura. A peça teatral, retratada dentro do livro de mesmo nome, é temida por causar danos físicos e psicológicos aos leitores, levando-os a um estado de profunda insanidade e até à morte.

Hastur by James Ryman ©2008-2014 namesjames
© Hastur by James Ryman

É sobre essa peça maligna que trata o livro O Rei de Amarelo (Intrínseca, 2014). Uma obra-prima de Robert William Chambers, que ficou esquecida durante muito tempo, porém retomou notoriedade por servir como inspiração à bem-sucedida série policial True Detective (Nic Pizzolatto, HBO, 2014). O livro é uma coletânea de contos de terror cósmico, uma espécie de terror filosófico que envolve fenômenos com universos paralelos ou realidades alternativas.

A obra O Rei de Amarelo pode ser dividida em duas partes principais; a primeira, na qual se manifesta a presença do fantástico, e a segunda, de ambientação mais realista. Essa primeira parte engloba os quatro contos principais da obra, pois o tema central deles é a influência da peça intitulada O Rei de Amarelo nos personagens que a leram. Há ainda dois capítulos de transição (um conto fantástico e uma seleção de poemas em prosa), e a última parte, que reúne o Quarteto das Ruas, contendo quatro contos que se passam em determinadas ruas de Paris, com alguns personagens aparentemente ligados a personagens da primeira parte.

Os contos da primeira parte, de caráter fantástico, são: O reparador de reputações, A máscara, No Pátio do Dragão e O Emblema Amarelo. Em todos eles, o insólito se manifesta após algum personagem tomar posse da peça maldita, O Rei de Amarelo, e empreender sua leitura, seja movido pela curiosidade, ou por acaso.

Em O reparador de reputações, um dos contos mais interessantes do livro, é apresentada uma Nova York distópica, onde judeus e negros foram expulsos do Estados Unidos, o sistema político tornou-se extremamente militarizado, e câmaras de suicídio (as Câmaras Letais) foram abertas em várias cidades e vilarejos do país, para atender à grande demanda de indivíduos desesperados.

O protagonista e narrador do conto é o Sr. Hildred Castaigne, que passara uma temporada internado num sanatório, mas acredita que nunca esteve com qualquer alteração psicológica. Ele é amigo do excêntrico Sr. Wilde, personagem inspirado no Oscar Wilde (O Retrato de Dorian Gray), que é um reparador de reputações, um negócio bastante lucrativo para ele. Logo os dois planejam uma conspiração para trazer de volta O Rei de Amarelo, “um rei a quem imperadores já serviram”, “um rei que não descansará até tomar as mentes dos homens e os pensamentos que eles ainda não tiveram”. O plano é levado até as últimas consequências pelos idealizadores, atraindo assim a tragédia para o destino de ambos.

A máscara
Camilla: O senhor deveria tirar a máscara.
Estranho: É mesmo?
Cassilda: É mesmo, está na hora. Todos tiramos nossos disfarces, menos o senhor.
Estranho: Eu não estou de máscara.
Camilla: (Horrorizada, em particular para Cassilda.) Não é máscara? Não é máscara!
O Rei de Amarelo, Ato I, Cena 2. (Conto 2: A máscara, p.59)

A máscara, outra história intrigante, trata de um triângulo amoroso entre três jovens artistas; Alec, Geneviève e Boris. Este último realizava experiências com alquimia e seres vivos, transformando as cobaias em esculturas de mármore. No estúdio de Boris, Alec encontra o livro cuja má fama era do conhecimento de todos, mas não resiste à tentação de lê-lo. Por conseguinte, o trio torna-se vítima do infortúnio provocado pelo livro.

O terceiro conto, No Pátio do Dragão, apresenta um fenômeno de experiência extracorpórea, em que o narrador-personagem ingressa em uma dimensão de sonho, ou melhor, pesadelo, como consequência da leitura da peça.

A morte e a morada horrível das almas perdidas, para onde minhas fraquezas havia muito o mandaram, tinham-no transformado aos olhos dos outros, mas não aos meus. E então ouvi sua voz, erguendo-se, mais encorpada, trovejando pela luz radiante e, enquanto eu caía, o brilho, aumentando cada vez mais, jorrou sobre mim em ondas de chamas. Então, mergulhei nas profundezas e ouvi o Rei de Amarelo sussurrando para a minha alma: “Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo!”
(Conto 3: No Pátio do Dragão, p.88)

O quarto conto e último centrado na peça sinistra, O Emblema Amarelo, é considerado o melhor conto fantástico de Robert Chambers pelos críticos e leitores. Esse conto narra a história de um pintor americano, Sr. Scott, que morava na França e acaba se envolvendo com uma de suas modelos de pintura, Tessie. Ela encontra o livro encadernado em pele de cobra na biblioteca de Scott e o lê, contrariando o jovem pintor, o que faz com que ele, temendo pelo futuro de Tess, também leia a peça. Assim, os dois entram numa espécie de pesadelo coletivo tal como os personagens dos contos anteriores e o desfecho, apesar de previsto, não deixa de ser surpreendente.

Os capítulos de transição da obra, pois sua estrutura e temática não se encaixam completamente em nenhuma das duas partes principais são: A Demoiselle d’Ys e O paraíso do profeta. O primeiro, inspirado num conto de fadas do folclore francês, sobre a lendária cidade de Ys ou Ker-Ys, narra uma experiência de viagem no tempo, em que um aventureiro americano, Philip, se perde num pântano de Kerselec e vai parar num vilarejo, em 1573, três séculos anteriores à sua época. Lá ele vive um romance com uma falcoeira, Jeanne D’Ys.

O segundo capítulo de transição, O paraíso do profeta, compreende uma antologia de poemas em prosa com grande simbologia referente ao universo de O Rei de Amarelo. A segunda seção da obra, de caráter mais “realista”, porém de igual qualidade literária, abrange os contos: A rua do Quatro Ventos, A rua da primeira bomba, A rua de Nossa Senhora dos Campos e Rue Barrée. Tais contos narram as aventuras de artistas boêmios vivendo em Paris e seus casos amorosos.

Nota-se que há uma progressão relativa ao final de cada história, pois à medida que se aproxima o final da obra, os desfechos vão se mostrando mais românticos e menos trágicos. Enquanto na primeira parte do livro os contos sempre terminam em tragédia, na segunda, a infelicidade vai sendo atenuada até culminar em finais menos infelizes nos últimos contos, apesar de alguns ainda conterem morte e guerra.

Robert W. Chambers
Robert W. Chambers

Essa obra de Robert Chambers apresenta uma estrutura complexa e tramas intrincadas, repletas de detalhes, contendo ainda muitas referências bíblicas, à mitologia grega e à mitologia do Rei de Amarelo, que sempre será um mistério, pois a sinistra peça fictícia não foi revelada integralmente. Apenas algumas passagens foram inseridas no livro, referentes à seres ou entidades como O Rei de Amarelo e Hastur, personagens aparentemente humanas, como Camilla e Cassilda, locais míticos como Carcosa: “onde estrelas negras pendem dos céus; onde as sombras dos pensamentos dos homens se alongam ao entardecer, quando os sóis gêmeos mergulham no lago de Hali”, e símbolos como o Emblema Amarelo e A Máscara Pálida. Essa obra acabou por influenciar grandes nomes, como H. P. Lovecraft (Os Mitos de Cthulhu), Neil Gaiman e Stephen King.

O Rei de Amarelo, portanto, é uma obra que merece ser lida e relida, principalmente pelos leitores amantes de histórias de terror e fantasia, e por todo leitor com desejo de experimentar algo tão original quanto surpreendente, pois sua qualidade literária e suas histórias com tramas criativas e bem elaboradas são elementos essenciais a uma obra cativante. Um livro que sugere a materialização dos efeitos que uma leitura pode causar no indivíduo, seja de modo positivo ou negativo, mas decerto ilustra o quanto a leitura pode transformar nossa mente e nossa realidade de maneira irreversível.

Se O Rei de Amarelo fosse uma Tirinha:

  • Essa tirinha de The Perry Bible Fellowship Comics, Book World, me faz imaginar como seria o mundo dentro da peça teatral O Rei de Amarelo. Confiram:
    pbf050ad -The Perry Bible Fellowship Comics

Curiosidades:

  • A cor amarela tem um significado muito importante nessa obra, pois, no século XIX, essa cor “era o matiz do pecado, da podridão, da decadência e da loucura”, a ponto de a principal revista literária de Londres, em 1890, chamar-se O Livro Amarelo. (Carlos Orsi)
  • De acordo com Carlos Orsi, especialista na obra de Chambers, a peça Salomé (1893), de Oscar Wilde, que foi censurada durante 40 anos na Inglaterra, é muitas vezes apontada como a “versão real” da peça fictícia O Rei de Amarelo, existente no universo do livro homônimo, O Rei de Amarelo, de Robert Chambers.
  • Desde a publicação do livro de Chambers, vários autores tentaram criar “o texto original” da peça em dois atos de O Rei de Amarelo. A versão mais bem-sucedida aparece no conto More Light, do escritor americano de ficção científica James Blish (1921-1975).
  • Confira uma entrevista exclusiva de Carlos Orsi, jornalista e escritor que revisou a edição de O Rei de Amarelo em português, concedida à Editora Intrínseca: AQUI.
  • capas rei de amarelo clock tower arte e letraExistem mais duas versões de O Rei de Amarelo em língua portuguesa: A primeira delas é a edição com o título O Símbolo Amarelo e Outros Contos, da Editora Arte e Letra, lançada em março deste ano; e a segunda, com o nome O Rei de Amarelo, tem lançamento previsto para janeiro de 2015, pela Editora Clock Tower, e promete ser uma edição de luxo, com capa dura e algumas ilustrações.

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Ficha Técnica

Título: O Rei de Amarelo
Título original: The King in Yellow
Autor(a): Robert W. Chambers
Editora: Intrínseca
Tradução: Edmundo Barreiros
Edição: 2014 (1ª)
Ano da obra / Copyright: 1895
Páginas: 256
Sinopse: Obra-prima de Robert W. Chambers, O Rei de Amarelo é uma coletânea de dez contos de literatura gótica publicada originalmente em 1895 e considerada um marco do gênero. Influenciou diversas gerações de escritores, de H. P. Lovecraft a Neil Gaiman, Stephen King e, mais recentemente, o escritor, produtor e roteirista Nic Pizzolatto, criador da série investigativa True Detective, exibida pela HBO, cujo mistério central faz referência ao obscuro Rei de Amarelo. O título faz alusão a um livro dentro do livro — mais precisamente, a uma peça teatral fictícia — e a seu personagem central, uma figura sobrenatural cuja existência extrapola as páginas. A peça O Rei de Amarelo é mencionada em quatro dos contos, mas pouco se conhece de seu conteúdo. É certo apenas que o texto, em dois atos, leva o leitor à loucura, condenando sua alma à perdição. Um risco a que alguns aceitam se submeter, dado o caráter único da obra, um misto irresistível de beleza e decadência.

Onde comprar:
Saraiva | Cultura | Travessa | Estante Virtual | Submarino

7 comentários

  1. Olha, devo dizer que só pela capa o livro em si já chama a atenção, junto com a sinopse, ligada a sua resenha então. Fiquei curiosa pela trama, embora eu tenha certos pré-conceitos com leituras de peças teatrais, mesmo que o livro não seja centrado na peça em si, mas no que ela causa as pessoas com quem tem contato.

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    • Eu recomendo sem medo, Natália, as passagens da peça inseridas na obra são poucas, mas bastante significativas. Quem sabe esse livro não te dê uma visão mais interessante sobre as peças de teatro?… Ou talvez até confirme sua opinião contrária às peças… elas podem ser bastante perigosas, rs.
      Brincadeiras à parte, essa é uma leitura muito enriquecedora.
      Obrigada pela visita, Natália! 😀

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  2. Li O Rei de Amarelo mais cedo esse ano e fiquei muito impressionada. A Máscara, principalmente, foi até triste. As notas explicativas, então, são um tesouro de pesquisa.

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    • Também fiquei muito impressionada com o livro, Emmanuella, ainda estou, rsrs. Eu já tinha ficado encantada com a série True Detective, que foi por onde eu tomei conhecimento de O Rei de Amarelo, mas essa obra me cativou de verdade. Os capítulos que mais gostei foram: O reparador de reputações e O paraíso do profeta (os poemas em prosa). Gostei muito de A mascára também, um dos melhores do livro. As notas são um presente para o leitor ❤
      Obrigada pela visita! 🙂 /

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  3. Gostei imenso do post, como habitualmente 😉
    Não conhecia este livro, mas fiquei muito curiosa por saber se também acharei que é uma ‘leitura negra’.
    Obrigada pela partilha!
    Boas leituras!

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  4. Não li o livro, mas a simbologia que aparece na história da primeira temporada de True Detective me remete muito a Kill List, um dos filmes mais perturbadores que já vi na minha vida. Kill List, por sua vez, é repleto de referências a O Homem de Palha, da década de 1970. Enfim, é um livro que me interessa. Ainda irei adquiri-lo.

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  5. Com certeza quando você vê a capa e lê o post já da um certo frio na barriga, uma mistura de medo e ansiedade (em ler o livro ).

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